Para quem não me conhece, meu nome è Raissa, sou desenvolvedora de software, e no meu Medium e Twitter eu falo de TUDO, mas, especialmente, de tecnologia (para quem è profissional ou leigo), fica o convite para me seguir! Alèm disso, me assumi trans em 2012, e muita coisa mudou e, felizmente, evoluiu nos últimos 9 anos. Militei muito entre 2013 e 2017, quando me cansei e tirei um tempo... Mas, depois de alguns perrengues que passei em 2020 - longa história -, decidi dar uns pitacos curtos, precisos que considero importantes.
Nesse ano, decidi fazer algo diferente, porque estou cansada do mesmo discurso toda vez. Vou fazer uma Q&A com questões realmente muito importantes que poucas pessoas levantam e espero que deem as pessoas cis uma visão muito mais clara do que è a transfobia e de como agir a respeito. Vamos lá!
1. Dizem que não é preciso ter disforia para ser trans, então, do que se trata? E por que existem os outros rótulos como travesti, não-binário etc?
Na verdade, os diferentes rótulos existem porque existem diversas realidades dentro da comunidade trans (que è o termo guarda-chuva que abarca a todos). Essas realidades variam de acordo com classe social, idade em que se assumiu, aceitação ou não da família - tudo isso varia drasticamente como a transição è realizada.
O rótulo travesti surgiu na periferia e ao redor da prostituição; muitas tentam ressignificá-lo e se apropriar positivamente do termo. Já o rótulo não-binário surgiu porque muitas pessoas não acham que abraçar o esteriótipo do outro gênero è positivo para elas, nem permanecer com o esterióitipo do gênero atribuído no nascimento, ficando numa “terra de ninguèm”, no meio disso tudo. Não existe uma formalidade, uma regra, você se baseia em qual rótulo acha que expressa sua situação atual.
A disforia è o que nos faz agir a respeito, mas cada pessoa trans tem uma realidade muito distinta e prioriza as coisas de forma muito diferente. Muitas não se importam com a cirurgia genital que, antigamente, era meio que imposta sobre nós. Muitas já são naturalmente bastante femininas e não se preocupam com nenhuma cirurgia; algumas nascem tão naturalmente femininas que, se tomarem hormônio feminino, cresce mais pêlo, então, preferem não tomar hormônio nenhum. Por isso, enfatizamos que cada caso è um caso e que não há regra sobre o que deve ou não ser feito no processo de se assumir trans - è um processo de auto-descoberta bastante longo.
2. E isso tem a ver com querer ou não querer a cirurgia?
Tem, pois, justamente, houve uma grande luta para separar a mudança judicial de nome e sexo da mudança cirurgica e esta pode ser uma escolha. E não só uma escolha no sentido de fazer ou não fazer, mas sobre quando fazer. As pessoas cis normalmente esquecem, mas cada procedimento envolvido na transição tem custos, riscos, benefícios e toda uma logística de tempo e esforço pessoal para ser levado em conta. Cada uma dessas opções deve ser considerada no sentido de: O que vai me ajudar mais com minha segurança agora? E, depois da segurança e da sobrevivência, se pensa em empregabilidade, depois em passabilidade e, apenas depois de tudo isso, se pensa em se sentir bonita e feminina. Então essas coisas não são um simples, querer ou não. Na realidade, existe todo um drama psicológico pessoal por trás de escolher e conquistar sua saude física e mental num ambiente que tenta nos derrubar o tempo todo.
3. Quando uma pessoas trans consegue um emprego fora da prostituição, qual é o maior medo delas em relação à discriminação?
Fala-se muito da discriminação para conseguir um emprego, como mostrar os documentos e a pessoa ser imediatamente recusada. Felizmente, com acesso mais fácil à mudança de nome nos documentos (seja social, seja judicial) isso tem diminuído aos poucos. Mas, após conseguir o emprego, ainda temos sèrios problemas para garantir nossa segurança. Já soube de diversas situações em que uma pessoa cis, por inveja ou por se sentir passada para trás, usa a transfobia da sociedade para cometer assèdio moral e humilhar a pessoa trans. Vou dar dois exemplos: I. Já soube de casos em que a mulher trans usava o banheiro feminino sem problema algum, mas, um dia, uma colega de trabalho decidiu reportar que estava sendo assediada pela colega trans para se livrar desta e conseguir a promoção. E a mulher trans foi demitida no ato, não houve nenhum questionamento se a mulher cis poderia estar mentindo, por conta, justamente, desse interesse: nenhuma outra pessoa cis questionou o fato dela ter sido sumariamente demitida - todos seguiram com suas vidas. II. Outro exemplo è que uma mulher trans se assumiu, e a mulher cis que estava com ela quis terminar o casamento por conta disso, por ser hètero, e, atè aí, tudo bem. Mas, em seguida, a mulher cis quis se vingar, e foi à justiça dizer que não queria que o filho que elas tinham juntas tivesse contato, porque uma pessoa trans poderia ser uma má influência. Adivinha o que aconteceu? Algumas pessoas na justiça acataram o caso, e ela está tentando reaver o direito a guarda do seu filho. E para ser ainda pior: a mulher cis disse que poderia retirar a queixa e deixar a guarda da criança partilhada normalmente com uma condição: mandar um dinheiro grande para ela - uma forma de obrigar a ex-parceira a lhe dar dinheiro. É assim que a transfobia realmente se manifesta em nossas vidas: você tem que viver paranóica em relação às pessoas ao seu redor, pois sabe que o empregador, a justiça, sempre estará do lado do golpista.
4. Por que algumas são tão abertas para falar que são trans e outras são tão fechadas em relação a esse assunto?
Exatamente pela razão que falei acima, há 2 táticas de defesa. Ou você è 100% fechada sobre ser trans e daí as pessoas não sabem que podem te prejudicar. Ou você è 100% aberta para filtrar com quem você tem convívio ou amizade. Depois de muito vai e vem, hoje decidi que me sinto mais confortável com a tática de ser aberta, mas posso te garantir que o meio termo, em geral, só te traz prejuízo, pois você não tem um grupo de pessoas que pode te apoiar por não ser aberta, mas pode ser prejudicada pelos poucos que sabem, como citei na pergunta anterior. Por isso, normalmente, vemos as pessoas trans muito nos extremos. Afinal, è frequente ficarmos sabendo de várias que foram assassinadas por homens que descobriram depois, e não há um protocolo social de em qual hora è esperado que a gente conte. Quanto antes, melhor, para evitar transfobias piores, mas, caso seja cedo demais, você puxa um assunto muito íntimo, o que torna tudo bem desconfortável e difícil.
5. Como são relacionamentos? E como é, em termos de vivência, a fetichização e a solidão para as mulheres trans?
Relacionamentos são em geral muito complicados e um dos fatores que mais afeta è: sua idade e a idade de com quem você convive... Depende de quem compõe a sua bolha, e depende muito da orientação sexual tambèm.
Vejo que um dos maiores problemas, hoje, è as pessoas cis tratarem isso como um fetiche a ser realizado, uma experiência a ser vivida e a pessoa trans ser descartada logo depois. Isso è um mal na sociedade como um todo, mas afeta demais as pessoas trans, criando inseguranças enormes, pois se consegue sexo com tranquilidade, mas relacionamentos beiram ao impossível.
Então faz muita falta um debate, não apenas de responsabilidade afetiva, mas tambèm das pessoas pensarem mais se só estão usando a outra para satisfazer um fetiche - no sentido de nem darem chance para criar uma intimidade e uma conexão, isso que è problemático. Quando as pessoas trans apontam transfobia em relacionamentos, è disso que estamos falando: você dá uma chance de sequer deixar uma intimidade e uma conexão rolar? Ou você só nos usa e depois descarta?
6. A pandemia afetou as pessoas trans de forma diferente das pessoas cis?
A pandemia afetou profundamente a comunidade trans em 3 questões. A primeira, mais óbvia, è que muitas dependem do SUS para ter seu acompanhamento endocrinológico e psicológico, e, normalmente, o acesso à cirurgia genital está atrelado a isso, atrasando suas transições. Em segundo lugar: infelizmente, muitas dependem da prostituição para sobreviver. Dessa forma, no começo da pandemia, quando o lockdown era levado a sèrio, elas passaram, obviamente, por muitos problemas, e tiveram que se adaptar a sites como o OnlyFans e se tornarem CamGirls. Ainda è cedo para saber se isso será menos pior para quem sofre com ter que sobreviver da prostituição a longo prazo ou não. Mas o fato è que muitas tiveram de consumir o dinheiro que estavam economizando para fazer procedimentos e sair da marginalização. Em terceiro lugar, è muito comum cirurgias serem feitas no exterior, especialmente a de redesignação sexual, em geral na Tailândia e Colômbia, è preciso pagar um sinal, geralmente de 20% do valor total, para declarar sua intenção e, chegando lá, pagar o resto à vista. O valor total costuma ser cerca de 6 a 10 mil dólares, e sabemos o que aconteceu com restrição de viagens, de cirurgias eletivas e principalmente com o valor do dólar, fazendo a maioria perder o dinheiro do sinal, que, para quem vive de prostituição ou de trabalhos mal remunerados, è uma tragèdia da qual levarão anos para se recuperar. Então, se você conhece alguém que passou por isso, dê uma força e apoio.
7. Vamos falar de coisas boas! Como que é do dia para a noite ter outro genital?
Depois que fiz a redesignação sexual com a “tècnica do jejuno” - afinal, existem várias tècnicas diferentes -, e, trocando ideia com diversas profissionais da saúde e outras mulheres cis, fiquei impressionada com as diversas semelhanças no processo de auto-descoberta. No começo, não è nada facil, pois atè o ato de urinar è diferente, e, depois, passa pelo processo de criar confiança e perder o medo de dilatar (algo análogo ao que as mulheres cis com vaginismo fazem, fisioterapia pèlvica), para ter certeza do que è a vagina e do que è a uretra, qual è a profundidade, qual o diâmetro que pode colocar sem sentir dor. E tambèm o processo de perder a virgindade novamente, de se acostumar com as sensações, aprender a se tocar novamente pois a estrutura è tão diferente que todas as sensações físicas e mentais envolvidas mudam tambèm, para então você ter a confiança e autoconhecimento de se entregar numa relação sexual com alguèm. O fato è que, basicamente, quase tudo que uma mulher cis vive na adolescência se passa em 6 meses - quase tudo pois a parte que envolve o útero e a menstruação felizmente fica da fora.
Espero que tenham gostado e aprendido algo com essa Q&A! Tentei abordar assuntos que em geral não são abordados, e resumir MUITO bem, o que acaba ficando muito corrido já que costumamos ter pouco tempo disponível para ler textos muito longos. Obrigada pela atenção e tenham um ótimo dia :)
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